Decepcionante a situação cultural do país — declara Otto Maria Carpeaux

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Entrevista com Vamireh Chacon e Nilton Combre
Diário de Pernambuco, 1952

Não há inflação de provincianos no Rio — O romance regionalista praticamente acabou — A luta contra a Academia é uma fábula — O hermetismo é uma poderosa arma de mistificação — Não tolero que se fale em arte popular — Outras declarações

Embora fugindo de certo modo à nossa orientação geral de estudos, que se dirige mais no sentido da Filosofia e das Ciências Sociais, decidimo-nos a reproduzir a palestra mantida com o conhecido crítico literário do Correio da Manhã, pois quem vai ao Rio e foge à simples intenção de passear, não pode deixar de fazer uma visita ao ensaísta e crítico culto e erudito que milita em nossa literatura: Otto Maria Carpeaux.

Fugindo de uma Europa subjugada pela barbaria, perseguido em sua pátria pelos invasores, dignificado pela luta contra o totalitarismo nas trincheiras da imprensa, Carpeaux chegou ao Brasil desiludido e com a fé nos homens já perdida, tendo deixado atrás de si a sua família, os seus bens, os seus livros e o seu nome. Naquela época, e já se vão doze anos, o poderio nazista ameaçava dominar o mundo, e todas as esperanças na democracia e liberdade pareciam perdidas.

Porém aqui em nossa pátria, Carpeaux logo encontrou amigos decididos que lhe fizeram voltar a fé perdida e de novo o trouxeram à literatura. Facilitaram o seu ingresso na imprensa e lhe deram uma nova pátria. Esses amigos, Carpeaux os nomeia no prefácio do seu primeiro livro publicado entre nós, ao lado de palavras significativas como essas:

“As vozes proféticas do passado ensinam-nos a interpretar a nossa situação; interpretação que equivale a um julgamento do mundo e de nós mesmos, a um exame de consciência. É só a luz interior que pode iluminar o caminho pelas trevas, para conferir um sentido moral ao purgatório dos nossos dias, para acender na cinza do que foi, a vacilante luz de uma nova esperança. Era o meu caminho também: ainda sinta na boca o travo amargo da cinza do purgatório; já devo agradecer a aurora de uma nova vida. Quindi uscimmo a riveder le stelle. Devo agradecer aos queridos amigos Alvaro Lins e Augusto Frederico Schmidt a regeneração da fé perdida nos homens, o sentimento duma nova vida e duma nova pátria” (A cinza do purgatório — 1942).

Hoje, o exilado austríaco tornou-se cidadão brasileiro e com o prestígio do seu nome e de sua cultura, ocupa com justiça a posição de vanguarda que lhe reconhecem todos os que neste país têm opinião autorizada.

Uma entrevista com Carpeaux, que já publicou entre nós três livros (A cinza do purgatório, Origens e fins e Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira), tem mais em mãos de editor (Literatura do Ocidente, 3 vols.) e já escreveu mais de mil ensaios, fazia-se necessária.

E numa das várias visitas que lhe fizemos, pois ele na sua simplicidade e no seu interesse pelos jovens exigia a nossa presença nas horas de folga, não hesitamos em propor que aquela conversa passasse além de nós três e tivesse maior divulgação em Pernambuco. E logo nos improvisamos em repórteres, curiosos de conhecer fatos pessoais e opiniões literárias.

Inicialmente indagamos sobre sua vida na Áustria, seus estudos e como conseguira adquirir cultura tão vasta e tão profunda, ao ponto de alguns adversários dizerem que ele possuía um dicionário universal de literatura único no país. Corre por aí também que ele lê dois livros por noite, além do seu trabalho na redação do Correio da Manhã, e escreve inúmeros artigos.

Feita aquela pergunta, ouvimos com atenção o mestre falar da sua vida e dos seus estudos.

Vienense, estudou primeiramente física e matemática na sua cidade natal. Depois de formado, porém, verificou que não tinha vocação para aquelas ciências, embora as admirasse bastante e as estudasse com interesse.

Resolveu então dedicar-se às letras e à filosofia, formando-se em Viena. Acrescentou que o estudante europeu nunca cursa uma só Universidade. Por isso, no decorrer dos seus estudos, viajou pela Europa, especialmente Alemanha e Itália, frequentando universidades dessas nações. Enquanto isso, colaborava na imprensa de Viena e de outros países, servindo também como correspondente de jornais austríacos.

Desde essa época, nunca mais abandonou o jornalismo. Entretanto, apesar de contar 25 anos de batente, ainda não se acostumou com a profissão que é bastante ingrata, obrigando-o a escrever sobre assuntos inteiramente desprovidos de interesse.

Foi exercendo sua profissão de jornalista que o encontrou o Anschluss e ainda em virtude dela que sofreu perseguição dos nazistas. Porque, como bem frisou Alvaro Lins, “Otto Maria Carpeaux foi na Áustria um católico liberal, democrático e esquerdista, em discordância muitas vezes com a maioria dos próprios católicos. Tão independente e livre na Áustria quanto Maritain ou Bernanos na França”.

Colaborando num semanário político, Carpeaux escrevera violento artigo anti-hitlerista. O semanário foi remetido aos assinantes, circulando em plena Viena já ocupada.

Para evitar a prisão — o diretor do Reichspost morreu depois num campo de concentração — teve de esconder-se durante vários dias, mudando de residência durante todas as noites. Ao fim destes dias terríveis, conseguiu fugir do país, disfarçado e usando papéis falsos.

Esteve em seguida na França, na Bélgica (ma seconde patrie, segundo ele próprio), vindo finalmente para o nosso país em 1939.

Foi então que encontrou Alvaro Lins e outros amigos, que lhe fizeram retomar a fé perdida e o trouxeram novamente ao convívio dos homens e às atividades literárias.

Indagado ainda acerca dos idiomas que conhecia, disse-nos que os dividia em três classes: os que falava corretamente, aqueles em que redigia e aqueles em que lia.

Conseguimos anotar somente os em que lê: grego, latim, francês, italiano, espanhol, português, inglês, alemão, holandês, dinamarquês, sueco e russo.

Feita esta introdução, avisamos ao conhecido crítico que trazíamos uma série de perguntas engatilhadas, que julgávamos de interesse para os leitores da Província.

Antes que formulássemos qualquer pergunta, fomos advertidos que não seria respondida qualquer indagação acerca do Existencialismo, do qual, todos falam e pouquíssimos entendem…

Começamos pela pergunta referente à situação cultural do país.

— É decepcionante. Constato atualmente uma apatia esmagadora. Um completo desinteresse do público que faz passar despercebidos livros de autores importantes e esforços de homens dinâmicos. É o caso do Simeão Leal, que realiza um trabalho considerável, mas inteiramente desconhecido do grande público. As edições diminuem cada vez mais porque as editoras são casas comerciais e se os livros não têm saída…

As editoras provincianas são uma ajuda, mas por força das circunstâncias contribuem muito pouco.

Acho que os editores seguem uma psicologia errada quanto a romances e contos. Esses livros saem bastante caros, e o povo não os pode comprar. Contudo eles podiam fazer como os seus colegas europeus no após-guerra: publicarem romances em papel e formato de jornal, acessíveis a qualquer bolso. Creio que esta solução teria bons resultados no Brasil, principalmente no interior.

Entretanto, ainda nos é dado ver, e com que satisfação, iniciativas realmente de vulto, como o Instituto Brasileiro de Filosofia, em São Paulo. A Revista que ele está publicando sob a direção de Miguel Reale é uma cousa como nunca se viu neste país.

— Que acha da vida literária no Rio? E as famosas igrejinhas catalogadas numa reportagem do Jornal de Letras?

— No Rio não existem mais igrejinhas e panelinhas. A vida hoje está atomizada. De há muito se acabaram os célebres encontros à porta de livrarias como a José Olympio, a Garnier ou bares como o Amarelinho, Juca’s Bar, Vermelhinho etc. Agora chegou a vez dos artistas de cinema, rádio, teatro, como é o caso do Vermelhinho. Não estou certo de que essa mudança é benéfica ou não.

— Acredita na transferência da capital para o centro?

— De maneira nenhuma. Embora esteja na Constituição desde 1891, isso é só conversa. Não haverá político algum que prefira viver no sertão.

Além do mais, tal transferência, caso se efetuasse, traria invencíveis dificuldades e prejuízos para os intelectuais. Porque, no Brasil, literatura não enche barriga, os escritores são obrigados a exercer várias atividades. A maioria deles pertence ao funcionalismo público e trabalha ao mesmo tempo em jornais, empresas particulares, colégios etc.

Caso houvesse mudança da capital, ficariam num terrível dilema. Escolher entre o funcionalismo e as outras atividades. De qualquer maneira, morreriam de fome porque qualquer das alternativas que escolhessem não daria para viver.

Por tais motivos e muitos outros, não acredito que se concretize essa transferência.

— Que livros pretende publicar?

— Recentemente, saiu a Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Porém veio cheio de tremendos erros de revisão. Tirarei logo que seja possível uma segunda edição. A Literatura do Ocidente, em três volumes, que foi anunciada há muito tempo, está desde 1945 em mãos da editora, que é a Casa do Estudante do Brasil. Não sei por que até agora não a publicaram.

— Acha que o hermetismo, tão em moda, seja uma mistificação?

— Decididamente, não. Pelo contrário, julgo que toda verdadeira poesia é hermética. Não nego porém que o hermetismo seja uma poderosa arma de mistificação. Atrás dele se esconde tudo o que existe de ruim, tudo o que não tem valor. Todavia, defendo-o porque existe um que é verdadeiro, e defendo-o mesmo sabendo o que ele representa para os não-poetas.

— Que nos diz da situação da província diante da metrópole?

— A situação da província é bastante precária. Sendo até agora difícil ou mesmo impossível a sua independência, encontram os que se obstinam em lá ficar grandes dificuldades em serem conhecidos fora. Mesmo quando existem editoras, ou os livros não chegam ou quando chegam não encontram interesse no público metropolitano.

Vê-se então a imigração em massa dos escritores provincianos. De tal modo é acentuada, que o Rio está quase inteiramente ocupado pelo Exército do Pará. Escritor carioca é ave rara. Encontram-se somente intelectuais de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Minas Gerais e, uma vez por outra, do Rio Grande do Sul.

Todavia, não há inflação de provincianos porque o Rio oferece muitas possibilidades.

— De quais grupos de província tem conhecimento?

— Conhecia um bom grupo em Minas Gerais, que não mais existe. Um do Rio Grande do Sul também. Atualmente o Rio concentra os autores provincianos que antes viviam em seus Estados. Isto me parece um mal. Seria altamente desejável o movimento literário na província a fim de que se pudesse fazer alguma coisa de próprio.

Não quero defender com isso um regionalismo exagerado. Já passou esta época. Tanto que o romance regionalista acabou praticamente. Tinha começado muito bem com um José Américo, um José Lins do Rego e tantos outros. Mas logo todo mundo começou a escrever sobre seca, engenho, caatinga, capanga, cangaceiro. Não quero mais ouvir falar nessa história. Estou cheio dessa seca da imaginação…

— Que acha do movimento provinciano em Pernambuco?

— Não posso falar satisfatoriamente porque dele quase não recebo notícias. Entretanto conheço alguns nomes de evidência, sem falar em Gilberto Freyre, é claro, que é o maior deles e cuja fama já é internacional. Tenho um bom amigo lá, o Edson Nery da Fonseca, rapaz inteligente e que estimo bastante. Infelizmente não possuo o seu endereço. Conheço o Olívio Montenegro que é um escritor muito interessante, o jovem Pinto Ferreira, que me visitou, Sylvio Rabello, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Edson Régis, Guerra de Holanda. E agora o grupo formado em torno de Região, de que vocês me falam, e vou logo deduzindo que realizaram um esforço digno de elogios.

— Fala-se muito em Arte Popular. Que nos diz desta expressão?

— Arte popular não existe. Não tolero que falem nisso. Não vêem que é uma contradição? Todo mundo hoje quer dar opinião, embora poucos entendam do que afirmam. E não há assuntos mais atraentes para esses entendidos do que literatura, arte, filosofia, religião e política. O resultado vocês vêem: arte popular…

— E a luta de gerações?

— Isso também não existe. Reconheço que já houve anteriormente, mas hoje não se fala mais nesse assunto. A luta contra a Academia, por exemplo, é uma fábula. Os apedrejadores de hoje serão os acadêmicos de amanhã. Somente o Jornal do Commercio, do Rio, é que mantém a oposição à Academia.

Quanto aos jovens que apedrejam e no íntimo lá querem entrar, sofrem de precoce arteriosclerose. Existem moços muito escleróticos. Já nasceram assim…

Nessa altura da conversa havia chegado a hora de Carpeaux voltar para o plantão no jornal. Tivemos que nos despedir por aquela noite. Ainda lhe perguntamos a opinião sobre Léon Bloy, ao que ele recusou, alegando o direito que tem o entrevistado de não responder a certas perguntas.

Acompanhando-nos ao elevador, contou mais um fato da sua vida literária. Em conversa, ele gosta sempre de contar fatos interessantes relacionados com a sua carreira de escritor. Tratava-se agora de um jovem que lhe levara um livro e voltara depois para saber a opinião:

— Já leu o meu livro?
— Li; não vale nada. É uma porcaria.

E rindo disse-nos que estranhou muito que o tal sujeito não ficasse seu amigo…

Vamireh Chacon e Nilton Combre, ‘Decepcionante a situação cultural do país — declara Otto Maria Carpeaux’, Diário de Pernambuco, Recife, 15 nov. 1952, 2.ª seção, p. 1.

Vamireh Chacon aos 84 anos, em 2018 | Osmar Arouck/Wikipedia Commons

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Otto Maria Carpeaux: Obra Dispersa
Otto Maria Carpeaux: Obra Dispersa

Written by Otto Maria Carpeaux: Obra Dispersa

Projeto da editora Karpfen dedicado à coleta de textos dispersos de Otto M. Carpeaux. — Fan page: facebook.com/editorakarpfen

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