Sobre o caráter e o destino de D. Pedro II

Otto Maria Carpeaux | Vida Política, 1949

A queda do Império foi uma fatalidade. Não haveria Terceiro Reinado. Mas o último obstáculo no caminho da República foi a pessoa do Imperador, pessoa veneranda que até os inimigos ferozes da monarquia gostariam de poupar. A História, porém, ratificou ela o julgamento dos contemporâneos?

As biografias existentes, panegíricas todas elas, são da época republicana, lembrando a famosa frase do historiador francês Aulard: “Ah! que la République était belle sous l’Empire!”[1] Um Alencar, um Silveira Martins, um Saraiva, um Ferreira Viana, um Cristiano Ottoni falavam de outra maneira, acusando o imperador (ao qual vários entre eles serviram, no entanto, como ministros) de todos os abusos possíveis do seu poder político. Chegaram a chamar de ― Nero, o leitor dos versos de Victor Hugo. Não se podem ler, hoje em dia, sem sorriso essas diatribes. Mas o caráter de uma pessoa tão atacada e tão idolatrada ao mesmo tempo deve ter sido contraditório; e foi.

Imaginem um presidente da República, aproveitando suas horas livres para ler Rilke! O imperador viveu com o seu tempo.

D. Pedro II ainda não tinha 64 anos completos quando lhe derrubaram o trono. Mas parece que sempre foi velho. É a barba que vive na memória da nação. Foi tipo de burocrata assíduo; e há quem acrescente ― “burocrata mesquinho, ocupando-se com preferência das minúcias sem importância”. Mas esse “burocrata” tão seco estudava humildemente durante a vida toda! Não há motivo para sorrir das suas leituras de Victor Hugo, que não podia deixar de ser considerado, por volta de 1860, como o maior poeta da época. Imaginem um presidente da República, aproveitando suas horas livres para ler Rilke! O imperador viveu com o seu tempo. Foi liberal, de hábitos burgueses; mas tiranizando os ministros e presidentes de província, exercendo regime de moralismo insuportável. Usava seu poder para manter a balança do regime parlamentar, mas também ― acrescentam ― para fomentar a discórdia dos partidos políticos. Durante seus longos 49 anos de governo o Brasil evoluiu muito. Mas o imperador teria participado, ativamente, dessas modificações profundas? Preferiu viajar. Foi absenteísta. Até os amigos lhe atestam certa apatia. D. Pedro II não herdara o cavalheirismo donjuanesco (e às vezes donquijotesco) do pai; nem o simplismo nem as surpreendentes intuições políticas do avô. Não parece Bragança. Nem foi Bragança. Mas quem foi, então, esse homem contraditório, enigmático?

Outro dia contemplei-lhe longamente o retrato: um burguês da época victoriana, vestido de right honorable, membro da Casa dos Comuns ou então de broker do Stock-Exchange. Só em baixo do colarinho descobre-se o minúsculo distintivo de dignidade diferente: o Tosão d’Ouro, a mesma condecoração altíssima que usavam os príncipes da Borgonha e os reis da Espanha, da Casa d’Áustria. Um Habsburgo.

Contudo, o filho da arquiduquesa Maria Leopoldina Josefa Carolina e neto do Imperador Francisco II da Áustria, teria sido Habsburgo tão típico? Os membros da Casa d’Áustria vivem, na historiografia, como fanáticos sombrios, tipo Felipe II: assim, p.ex., Ferdinando II, o imperador da Contra-Reforma, que expulsou dos seus reinos os protestantes e mandou executar as cabeças heréticas da aristocracia tcheca. Ou então, surgem lembranças muito diferentes, de arquiduques alegres cuja libertinagem escandalizou o mundo, como a daquele arquiduque Otto, casado com D. Maria Josefa (neta, aliás, de D. Pedro II), casamento infeliz do qual nasceu Carlos, o infelicíssimo último imperador da Áustria.

Fanáticos ou libertinos ― mas assim não se resume o caráter contraditório da mais antiga das dinastias européias, família estranha cujos filhos todos conseguiram, cada um à sua maneira, viver fora da realidade. Homem fora da realidade foi Francisco II, avô do segundo imperador do Brasil: acreditava combater a hidra das revoluções, enterrando-se num imenso arquivo de papéis e processos, estudando-os com impontualidade infatigável. Burocrata assim também foi seu sobrinho, o imperador Francisco José, contemporâneo do D. Pedro II e algo como seu irmão no espirito, fiel à Constituição parlamentar do século XIX e no entanto vivendo nos tempos da etiqueta espanhola e do Tosão d’Ouro; usava barba diferente, mas também sabia “manter os partidos políticos e os nacionalidades em estado de descontentamento bem temperado”. Ao lado desses burocratas coroados aparecem, de vez em quando, os Habsburgos liberais: José II que reformou tudo, sem a mínima consideração pelas tradições históricas e católicas de sua Casa, chegando a expulsar frades e prender bispos; e aquele arquiduque Rodolfo cujos audaciosos projetos de liberal à maneira francesa (admirava mais Gambetta do que Hugo) terminaram, em Mayerling, com o suicídio, no mesmo ano em que caiu no Brasil a monarquia (foi primo de D. Pedro II). Havia Habsburgos-estetas como Leopoldo I, autor de notáveis composições musicais, e Carlos VI, grande conhecedor das artes plásticas. Por mais diferentes que sejam esses Habsburgos ― o D. Pedro II, burocrata, liberal e letrado, revela traços de cada um deles ― têm certas qualidades comuns: benevolência paternal, cujo tipo mais perfeito foi aliás uma mulher, a grande Imperatriz Maria Teresa; e certa apatia. Apatia de céticos, às vezes por desconfiança de quem está isolado da turba dos homens comuns, às vezes céticos por motivo da uma religiosidade que não liga às coisas deste mundo, considerando-as como sem importância. Sempre estão, este mais e aquele menos, fora da realidade. Neste sentido o mais típico dos Habsburgos é o Imperador Rodolfo II, que viveu no seu castelo de Praga rodeado de sábios e de objetos da arte, isolando-se do mundo, incapaz de tomar qualquer resolução. Teria sido vítima de abulia patológica. Mas ― teria sido realmente isso?

Mais infeliz do que Francisco José ― que conseguiria adiar o fim para além de sua morte ― Rodolfo II deixou-se arrancar o edito necessário e funesto. Concordou, assim como D. Pedro II concordaria com a abolição.

Sabemos que D. Pedro II detestava a escravidão. Fez muito para aboli-la, mas nem tudo o que poderia fazer. Nos momentos decisivos ― recuou. Em 1870, quando o problema se tornava urgente, preferiu a solução mais moderada entre as propostas ― a libertação dos nascituros ― o que devia adiar indefinidamente a solução definitiva. Em 1868, impusera à maioria liberal da Câmara um gabinete conservador; mas em 1885, cedeu perante Cotegipe. Enfim, a Lei Áurea foi assinada pela princesa ― mas não pelo próprio imperador. Reconhece-se nesse procedimento ― de adiar o mais possível as resoluções inevitáveis ― velho recurso da política habsbúrgica. O imperador Francisco José também costumava “prender os papéis”, sobretudo os do Ministério das Relações Interiores, sabendo inevitável ― num futuro incerto ― a guerra que poderia ser o fim da monarquia; e aconteceu mesmo assim. Assim como a Abolição derrubou a monarquia no Brasil. Quiseram, no fundo, abolir o Tempo. Mas apenas se colocaram fora da realidade que enfim os aboliria.

Nem sempre os Habsburgos foram assim vivendo em crepúsculos irreais. Os dos séculos XIV a XV eram príncipes enérgicos, políticos realistas. Dizem que o sangue de Juana la Loca, da espanhola, envenenou a família. Mas o filho da louca ainda foi grande estadista, um dos maiores de todos os tempos: Carlos V. Este era ainda capaz de tomar resoluções radicais para unificar a Europa latino-germânica, católica e erasmiana. Mas aliaram-se contra ele os franceses, os luteranos e o próprio Papa; e o Imperador ― o primeiro monarca moderno que abdicou ― terminou seus dias no Convento de San Justo: fora da realidade. Essa experiência de Carlos V ficou-lhes no sangue. Tinha-a no sangue seu neto, aquele Rodolfo II, o sábio abúlico do castelo de Praga. Detestava a intolerância religiosa. Mas recuou: a conseqüência seria a guerra, o caos, o fim da monarquia universal. Mais infeliz do que Francisco José ― que conseguiria adiar o fim para além de sua morte ― Rodolfo II deixou-se arrancar o edito necessário e funesto. Concordou, assim como D. Pedro II concordaria com a abolição. Contra este levantar-se-iam logo os conservadores; e seria a República. Contra Rodolfo levantou-se o próprio irmão, o arquiduque Mateus, depondo-o; e foi a Guerra de Trinta Anos. O “abúlico” fora, na verdade, um sábio. Na tragédia que o poeta austríaco Grillparzer lhe dedicou, assume ares de profeta.

Nós outros não acreditamos muito no papel decisivo dos indivíduos, fortes ou fracos, na História. Quem é mais forte é o determinismo histórico: a queda do Império, assim como aquela guerra, foi uma fatalidade; ninguém teria sido capaz de impedi-los. Por isso mesmo os acontecimentos não esmagam a memória dos vencidos. Mas por isso não eximem da responsabilidade os vencedores. O republicano Aulard podia dizer, com sorriso cético: “Ah! que la République était belle sous l’Empire!” Mas “nossa canção é mais triste”. No fim daquela tragédia austríaca, a sala no castelo imperial enche-se dos gritos que sobem da rua ― “Viva Mateus!” ― enquanto o vencedor se ajoelha perante o crucifixo, confessando: “Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!”

[1] “Ah! quão bela era a República sob o Império!”

Otto Maria Carpeaux, ‘ Sobre o caráter e o destino de Dom Pedro II’, Vida Política, suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, 25 set. 1949, pp. 1, 5.

--

--

Otto Maria Carpeaux: Obra Dispersa

Projeto da editora Karpfen dedicado à coleta de textos dispersos de Otto M. Carpeaux. — Fan page: facebook.com/editorakarpfen